To The Bone: O Mínimo Para Viver

Nesta última sexta feira (14), estreou o filme do Netflix To The Bone (O Mínimo Para Viver) que aborda a questão de distúrbios alimentares, com foco na anorexia. Muito antes, porém, da estréia, o filme já estava dando o que falar — tanto entre aqueles que adoraram o fato de uma grande mídia debater uma questão tão importante, quanto aqueles que entendem que tamanha exposição pode glamourizar ainda mais os distúrbios alimentares e a cultura da magreza. Ambas perspectivas são relevantes e, ainda que para mim o saldo do filme foi positivo, a meu ver, ambas estão corretas.

Antes de mais nada, eu gostaria de dizer que se você está com receio de ver o filme pelo impacto psicológico que ele pode ter, principalmente se você tem histórico de transtornos alimentares e teme que a obra possa vir a ser um gatilho, meu conselho é claro: NÃO ASSISTA. Se você tem acompanhamento psicológico, discuta com seu profissional, pode ser que ele tenha um viés diferente; e se você não tem e está sofrendo com os transtornos, definitivamente não assista — e antes de mais nada, procure ajuda. É importante entender que não é porque um filme está na mídia e sendo debatido que você PRECISA assistir. O que você PRECISA é cuidar da sua saúde e ser um bom ser humano, o resto é elegível, né?

Voltando ao filme, se eu fosse destacar um momento em que ele é muito bem sucedido é em duas frases pontuais e certeiras. A primeira quando a personagem principal, Ellen (Lily Collins) confrontada por sua irmã, que por motivos óbvios está preocupada, responde “I’ve got it under control” (tradução literal – ‘eu tenho sob controle’). Compulsões alimentares não possuem uma origem única, não é simplesmente uma repetição de casos de pessoas tentando se enquadrar na ditadura da magreza. Claro, nada disso ajuda, mas resumir toda questão a isso é muito reducionista e ineficiente. Um aspecto, porém, sempre presente, principalmente em quadros de anorexia é o anseio de controlar o incontrolável: nosso corpo.

Nosso corpo é um mistério para nós mesmos. Faz parte do nosso eu, ao mesmo tempo que é alheio a nós. Algumas coisas controlamos bem — andamos, falamos, gesticulamos, outras podemos nos educar — aprender a jogar tênis, a fazer ballet, a escalar montanhas, e até a ganhar músculos e emagrecer. Mas muito foge a nós: crescemos, envelhecemos e, pasmem, morremos independente da nossa vontade. E mesmo o que está sob nosso controle, uma hora pode fugir dele — a gente tropeça, engasga, titubeia, ou ainda, não consegue, mesmo com toda disciplina, moldar o corpo à imagem que temos em nossa mente. A verdade é que o corpo sempre nos escapa, e não saber lidar com essa verdade volátil nos causa dor, e em casos extremos, transtornos (alimentares ou não).

Tudo isso é refletido no segundo momento muito bem sacado do filme. Quando a madrasta de Ellen, ao deixá-la na clínica de internação diz “Be good. But not too good. Not perfect” (literalmente, “Fique bem. Mas não bem demais. Não perfeita”). É nessa linha tênue que às vezes nos perdemos. Não há problemas em ter objetivos físicos — sejam eles de performance ou estéticos — o problema, é seguir a tentação da perfeição. Uma diferença que parece muito clara, afinal já diz o jargão, “ninguém é perfeito”, mas para quem leva a cabo a ideia de que com determinação tudo é possível, o imperfeito deixa de ser humano e vira fracasso.

As questões referente às posturas médicas não vou abordar aqui simplesmente porque depende. Cada paciente vai demandar um input diferente. Algo muito bem apresentado, porém, e que não se restringe apenas a distúrbios alimentares é o fato de que o paciente só entra em recuperação se ele quiser. Não quero dizer que depende pura e simplesmente de vontade, é preciso sim do tratamento, mas o melhor tratamento do mundo vale de nada se a pessoa não ver que ela precisa dele. Além disso, ao contrário do que, infelizmente, muita gente pensa, o trabalho de divã não é o terapeuta que faz. O grande esforço é do próprio paciente — afinal, olhar para si mesmo é um trabalho que só nós podemos fazer.

 

Embora haja ganhos, há sim muitas questões complicadas no filme. Claramente a intenção dos criadores é conscientizar o público dos problemas em relação aos transtornos alimentares. O filme mostra cenas chocantes de como a personagem está definhando, e não há nada de belo nisso, mas ao mesmo tempo é muito difícil contar essa história na linguagem de Hollywood sem uma ponta de romantismo. Por mais dismorfe que a atriz aparente, com ossos à mostra e olheiras profundas, ela ainda está “apresentável” para a tela, o que faz com que até nos indentifiquemos com ela. E mais que isso, ela é ainda, a adorável Lily Collins.

É aí que chegamos no ponto em que o filme peca de modo gravíssimo. O corpo esquelético que foi exibido em cena justamente para mostrar o horror da doença e tentar ao máximo não glamourizá-la, é de fato da atriz Lily Collins que emagreceu para o papel. É de uma ética no mínimo duvidosa, um filme que quer expor os exageros da magreza, submeter uma atriz a este extremo. O contra-senso fica ainda mais grave quando sabemos que a própria atriz teve anorexia. Em entrevista, Collins diz que emagreceu de ‘modo saudável’ — sem nem entrar no mérito de como dietas restritivas nunca seriam saudáveis para alguém que sofreu de anorexia, não há como um ser humano chegar à composição corporal da atriz no filme de modo saudável. Além do fato de que não é necessário usar representações explícitas para trazer seriedade e tenção à tela, haveria milhões de outras maneiras de retratar a protagonista que não envolvam o emagrecimento extremo da atriz.

Outros muitos pontos, positivos e negativos poderiam ser ressaltados.  Mas mais importante do que destrinchar um filme, é levarmos essas reflexões para nossas vidas. Afinal, é muito bom que cada vez mais estejamos abordando esse assunto de forma responsável, e muito bom que a grande mídia fale disso, e não só com uma visão positiva do emagrecimento, mas claramente, a discussão ainda há muito o que amadurecer.

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